Beatriz Andreiuolo (Membro do IEP/SPRJ)

“Fique em casa”, diz a recomendação mais prudente desse momento. A aparente simplicidade dessa recomendação revela o que há de complexo em seu sentido e pode nos levar a pensar se podemos ainda estar em casa em um mundo que não nos conforta nem mesmo na privacidade de nossos lares. É possível que a voracidade com que buscamos superar, através da tecnologia, a solidão e a perplexidade diante do desconhecido só provoque mais desamparo, pois na falta de compreensão do lugar em que vivemos ele se torna estranho para nós. Essa situação não é nova. Ela estava aí, mas ficava mais bem escondida atrás da cotidianidade banal da vida contemporânea. Talvez a momentânea suspensão da ordem costumeira seja uma oportunidade para avaliarmos se a experiência de nossas vidas já não é desértica há mais tempo.

Não é por acaso que no cenário atual Hannah Arendt, a pensadora que buscou responder ao apelo do mundo através da tarefa compreensiva, venha sendo evocada com tanta frequência – seja pelos tempos sombrios ou pela expansão do deserto, duas imagens que frequentam seus ensaios. Ambas apontam para a crescente ameaça de que “o nada e o ninguém” venham a “destruir o mundo”, pois as sombras e as tempestades de areia – movimentos totalitários e os repetitivos mergulhos mal sucedidos do homem em sua subjetividade – colocam em risco a possibilidade de as pessoas distinguirem-se umas das outras em atos e palavras e enfraquecem a capacidade humana de julgar. A ausência de lugar para essas atividades, assim como a dificuldade de enxergá-las, decorre da diluição do âmbito público que requer que haja ao invés do nada, “tudo que há entre nós”, ao invés de ninguém, alguém.

Pode ser que o esforço necessário para compreender o modo como habitamos o mundo requeira um certo esvaziamento: menos consumo, menos ideologia, menos cultura, menos interesses, para buscarmos além dos nossos excessos aquela palavra que escapa todo o tempo: sentido. É que o pano de fundo desse des-abrigo é também a ordem técnica que exaure tudo sem demora, que cultua a eficiência pela eficiência e  faz o mundo parecer cheio de coisas, mas que também nos mostra que apesar das multidões o homem solitário pode estar rodeado por outros com os quais não é capaz de compartilhar nenhuma experiência.

Se Nietzsche foi quem primeiro diagnosticou a desertificação do mundo – “o deserto cresce: ai daquele que encobre desertos!” – , quem primeiro habitou o deserto com consciência foi também a vítima de sua mais terrível ilusão, ao acreditar que o deserto estava em nós. A última esperança dos homens está em não se adaptarem ao deserto, pois, embora ele tenha se tornado nosso solo comum, não somos do deserto, somos mortais em um mundo potencialmente imortal. Por isso, não somos naturalmente seres bem ajustados às condições de não-mundo.

Há, além disso, sofrimento decorrente dessa desertificação – que na atualidade ganhou nomes difusos como vazio, desorientação, depressão, pânico – e ele é precioso para resistirmos a habitar apenas os oásis, as esferas da vida que independem do mundo compartilhado. Nesse sentido, para compreender o deserto e não apenas a nós mesmos não podemos agora escapar de nossos horrores. Não há psicanálise nem remédio que possam nos tirar o sofrimento proveniente da desertificação do mundo; o que podem nos dar são oásis, fontes vitais que nos permitem viver no deserto sem nos reconciliarmos com ele. Se sofremos por essas condições, é porque ainda somos humanos: o perigo maior seria estarmos à vontade no deserto e nele passarmos a nos sentir em casa

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